quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Sobre a imperceptível (ou não) mão de obra de si


“Bom, mentirosa, aí está algo que sempre fui.” Falou mentalmente para si mesma enquanto se olhava na frente do espelho. Duas coisas que gostava de fazer, se olhar no espelho e falar consigo mesmo. Os dois juntos seria quase extasiante, se esta não fosse uma atividade tão cotidiana, mas apesar de ordinária, não sentia nada similar a comum em todas as ocasiões em que percebia que mais uma vez estava se admirando em frente ao espelho e que conversava com seus botões, então sorria. Tanto pelo reconhecimento da constatação quanto para se admirar novamente.

Ainda em frente ao espelho deixou-se levar pelos devaneios, fitou séria a si mesma, mas já não se via, estava em algum recôncavo de si, e neste local rememorava o que tinha acabado de se repetir. Mentirosa, era do que se chamava, para os outros também, mas o mais importante e segundo alguns, drástico, para si mesma! Refletia sobre isso de forma relativamente curiosa pois não conseguia perceber até onde o que ela sentia era verdadeiro e onde começava a fantasia, não sabia se submetida a um teste como o detector de mentiras o que seria apontado pois não tinha tanta convicção das suas convicções, claro, sentira-se triste, indignada, angustiada em sua vida mas não sabia ver de forma clara a veracidade desses sentimentos, ela os sentiu deveras? Ou os simulou como fora ensinada? Era de tal forma nebulosa essa questão para ela que se sentiu confusa de antemão e assim se sentindo se perguntou se assim se sentia verdadeiramente ou se repetira pra si que confusa estava para poder fugir desses questionamentos com a desculpa da confusão.

Percebeu-se no espelho, sua testa estava enrugada e novamente se questionava se assim não fazia só para satisfazer a reação esperada per si.“Meu coração acelera, minhas mãos ficam frias, as reações fisiológicas eu tenho.” Isso conta em favor da presença dos sentimentos, não é? Mal uma sensação de alívio a acertou e perguntou-se se aquilo não fazia parte de uma máscara, bem como sua testa enrugada para o espelho. (olhou-se. A testa ainda permanecia contraída).

Apesar de convicta que dificilmente iria alcançar uma resposta que lhe soasse honesta, continuou a devanear. Rememorou diálogos travados, palavras pesadas, medidas pra cada ocasião, até onde calou-se pra satisfazer o outro, até onde falou para posar para o outro, até onde se impôs para se mostrar a si mesma e definir-se. Até onde isso é real e onde começa a construção. “Aí está! Sou minha própria escultura” pensou como frase feita em um lampejo.

De novo percebeu sua presença, olhou mais uma vez seus traços avessos, tocou sua sobrancelha, observou quando entreabriu a boca e atentou-se para seus dentes, se distraindo ainda mais uma vez sentiu-se aspirada para dentro de si, estando lá, retornou a analisar seu dilema, se questionou se estava contente com sua definição (sua conquista no mundo das definições), se estaria angustiada com sua possível falta de vida própria ( pois a partir de agora via-se como uma títere de si mesma) e ao mesmo tempo que sentia um pouco de cada coisa pensava até onde ambos os sentimentos são verídicos, pois sentia-os pouco espontâneos, já que racionalizados, então de certa forma seriam premeditados e assim o sendo são tão lógicos como qualquer programação de computador. Então até a própria possibilidade de desespero perante tal afirmação se esvai sendo questionada antes do sentimento realmente apontar!

O chão rodou em sua volta, não sentia desespero, nem perto, aliás quase escapou-lhe um sorriso sarcástico perante todo o momento que acabara de passar em frente o espelho, perguntou ainda se o que estava fazendo ali seria a representação de uma cena de teatro ou o que os outros chamam de pensar.

Olhou-se e percebeu que estava bocejando e como por tomar consciência do que fazia o fez de forma prolongada. Falou silenciosa para si um boa noite, deu as costas ao espelho, que a refletiu ainda mais um segundo como se a roubasse por um instante sem que ela percebesse e então apagou a luz.


2 comentários:

Anônimo disse...

belo texto, o que seria do existir sem alguns devaneios singelos.

Unknown disse...

Massa garota, acabei de favoritar aqui. Não sei porquê, mas o texto me lembrou um outro de Derrida, Animal que Logo Sou, ele passa umas cem páginas travado na cena, dele nu, olhando sua gatinha de estimação o olhar. Não tem nada a ver, mas sacomé essa história de leitura, carretel desvairado, sem começo, fim, e chega, era só um comentário. hahahah.
Aew